Rua da Conferência

Eu parei, tirei algumas notas da certeira e entreguei a pequena mulher de turbante na cabeça que logo me foi dando o ramalhete das mais coloridas, variadas e perfumadas flores que eu já vira. Era uma tarde cinza e uma levíssima garoa tornava o dia um tanto quanto estranho, a primavera já permitia aos meus sentidos o deleite de sua bela conjuntura, pássaros que cantam ali, borboletas que bailam acolá e carros, centenas deles, que cortam bruscamente a leveza do cenário, e sob este ar de contrastes ia me dirigindo à catedral no centro da cidade.
A solidão persistente já deixava marcas na minha face de vinte anos, os cabelos negros estavam aparados, usava trajes que remetiam o intuito preferencial de conforto à aparência social, uma calça jeans velha e uma camiseta de um alaranjado que se desbotava, intelectualmente graduado e financeiramente pobre. Afinal nem sei como, mas nasceu em mim ainda na adolescência, onde teoricamente a imaturidade e o descaso com o mundo deveriam ter seu pico, um sentimento de admirar o mundo, comecei a achá-lo tão bonito e tão ignóbil o homem, tão inútil a cultura de acumulação de bens e o inescrúpulo para alcançar os ditos sonhos. As escolas traziam em sua formação um sentimento que transformava isso em lei, e a vida diária complementava oferecendo o sabor pútrido da miséria na lembrança, não queria toda essa carga de mesquinhez, nutria uma força (ou esperança) proveniente sabe-se lá donde para mudar e fazer mudar...
Na Catedral, imensa e pomposa, e historicamente conceituada, as formas arredondadas e o excesso de ornamentação delegavam a autoria da arquitetura exagerada ao barroco. Subi os primeiros degraus e breve observava seu interior gélido de tanto mármore, adentrei um pouco mais e sentei-me na ponta de um dos longos bancos que ficavam próximos da entrada lateral. Aquele lugar era bom, se eu estivesse com vontade de questionar a minha existência era para lá que me dirigia, passava horas a indagar Deus e (ou) os conhecimentos que nossa raça acumulou, se eu quisesse silêncio, pois lá eu buscá-lo-ia, havia em mim duas certezas naqueles momentos, a primeira é que hoje eu talvez fosse uma decepção às minhas catequistas, daquele período em que eu mal sabia pensar por mim e já me implantavam uma lavagem cerebral católica, a outra certeza era que independente de qualquer coisa eu sairia dali com o coração de uma criança que anseia seu lar, seus brinquedos, e que conhece somente os caminhos da ingenuidade.
Nem havia percebido, mas enquanto me perdia nas divagações uma mulher sentara ao meu lado e ali permanecera silenciosa, como a escutar meus pensamentos. Ela, sem mover um músculo além do necessário, perguntou-me:
- Brigaste com tua namorada ou esposa por acaso?
Sentia-me desconfortável diante da situação, uma mulher que nem conhecia perguntava sobre minha vida pessoal, e dentro de uma igreja ainda, olhei para ela como a não responder e ainda ser grosseiro, mas algo além do fato dela ser tremendamente bela impediu-me. Tinha cabelos tão negros quanto os meus, os olhos castanhos, lábios volumosos e voluptuosos, permaneci alguns instantes em silêncio numa admiração indiscreta e respondi:
- Não, venho apenas arejar os pensamentos, a solidão foi-me a melhor companheira desde que se findaram os tempos de escola.
- Sim, eu entendo. - responde ela voltando os olhos para o altar de pouca luz.
Levantei-me então e parti para casa, sem dito algum de despedida, a noite já se preparava para receber os boêmios e o ramalhete de flores que eu ainda trazia em mãos perfumava os locais por onde passava. Caminhei uns trinta minutos até chegar numa ruela, um casal brigava num canto sob a iluminação não existente de um poste, mas logo se beijavam e como se algo fizesse lembrar de uma atitude em falso de um deles, a briga reiniciava, no começo sussurrada, mas dali a pouco vinham os insultos e o tom de voz de ambos aumentava, algumas alcoviteiras aproximavam-se de suas janelas e se camuflando nas cortinas davam suas espiadelas para ver o que se passava, sem demora o casal terminava a discussão exaltada com um beijo veementemente selado e certamente em poucos minutos o único som que se ouviria proveniente daquele casal viria do quarto, o ranger férrico da cama de casal anunciando a paz. Eram meus visinhos.
Faltavam uns quinhentos metros para chegar ao meu prédio, o casal trouxera-me uma lembrança dos tempos juvenis, e neste dia muitas vezes estas lembranças vieram afagar-me e incitar minha alma para continuar na exploração dos segredos do mundo, lembrava-me que fora num mês de setembro, como este, que eu a percebi em um evento político governamental pelo fato de um grupo de pessoas que me acompanhava querer subir por escadas rolantes que desciam. Ah! Sorriso igual jamais tinha visto e jamais veria a não ser o dela, chamava-a de “Minha Russa”, pude ver a partir daquela manhã uma paixão se perpetuar, e ainda devo-lhe a promessa de algumas flores, da felicidade, um café da manhã e noites insanas e inacabáveis de luxúria e amor.
Subo ao 401, os corredores mantinham um cheiro de mofo incomodo desde o dia em que eu me mudara da minha pequena cidade interiorana para ali, também se mantinham intactas as teias de aranha nos cantos superiores da escada pois os que residiam naquele prédio eram basicamente ladrões, viciados, prostitutas, ambos, ou estudantes do interior, e, naturalmente, nenhum destes se preocupava muito com a limpeza, já que para isso teriam de gastar dinheiro e moravam neste antro de putrefação para exatamente, economizá-lo. Entro no meu apartamento, plenamente oposto ao contexto geral do prédio já que o mantinha limpo e organizado, pego algo para beber e coloco as flores sobre um balcão de mogno a minha esquerda, saco um livro de Pablo Neruda da imensa coleção na estante e me ponho confortavelmente sobre o sofá a lê-lo...
“Quero apenas cinco coisas...
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
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